Por Valéria Maria
Quando peço a um paciente que disponha toda reflexão e me conte tudo o que lhe passa pela cabeça, [...] me considero fundamentado para inferir que isso que ele me conta, de aparência mais inofensiva e arbitrária que seja, tem relação com seu estado patológico.
Sigmund Freud (2019, p. 525), em A interpretação dos sonhos.
Em um processo de análise rola de tudo um pouco. Nele, temos as entrevistas iniciais, os recalques, as neuroses, os traumas, as transferências, os mecanismos de defesa, a racionalização, a negação, o deslocamento, a projeção, a catexia, a compensação, a expiação, a fantasia, a identificação, a somatização, o isolamento, o divã (caso o analista tenha essa vivência), a sublimação, o gerenciamento de carreira.
Rola muito Freud, muito Lacan, muitos outros autores, significados e significantes, reais, simbólicos, imaginários e constantes metonímias. Rola psicanalista com sua análise em dia, formação continuada, supervisão y otras cozitás más... Tudo em constante relação com a contingência e a impermanência da vida. Assim, é salutar registrar o que não rola em uma análise: atender amigos e familiares, dar conselhos, enaltecer o ego, sugerir coisas, dar orientações, ou aplicar qualquer outro tipo de técnica que não a psicanalítica.
No percurso analítico, é trabalho do analista mover-se com seu analisante, para que este se dissolva aos poucos do superego. Ao dar voz aos recalques, aliviamos o sofrimento. O analista está nesse ambiente para suportar o conteúdo do outro. Tomar contato com isso é o trabalho da escuta: trazer à consciência (o que for possível) do inconsciente, manejar para mover as pulsões, fazer-se ver em um processo de escutar, olhar, acolher sem julgamentos. A partir dos discursos é que se movimentam os sintomas; no espaço de análise, esse discurso é simbolizado. Dessa forma, é importante falarmos um pouco das tópicas.
As tópicas são divididas em duas, a saber: Tópica 1 (que é o modelo topográfico): nela estão compostos o consciente, o pré-consciente e o inconsciente. O consciente é a capacidade de ter percepções, pensamentos, lembranças e fantasias do momento. O pré-consciente abriga os conteúdos que podem chegar facilmente à consciência. Já o inconsciente é onde estão os conteúdos/materiais que não estão disponíveis. É no inconsciente (a grande descoberta de Freud) que se aglomeram a energia psíquica, os desejos e os traumas. Nele, estão as pulsões. Tudo o que for recalcado, reprimido, que não é exposto, está no inconsciente. Todo o conteúdo que está no inconsciente é o motivo do sofrimento.
A Tópica 2 (que é o modelo estrutural) organiza-se da seguinte forma no psíquico: SE superego, Ego eu e ID a coisa. O superego ou supereu está relacionado a tudo aquilo que limita: a lei, a ordem, os valores, a disciplina, a moral. O ID ou a coisa, ou ainda o isso, é o reservatório pulsional, onde estão todos os nossos desejos para satisfação plena. O ID manifesta-se constantemente na vida do sujeito. Importante colocar que o SE censura o ID e, no meio desse conflito, está o Ego. O Ego surge do atrito do SE e do ID, pois quer sempre se expressar. O Ego medeia essa relação e aparece como “personalidade” da pessoa.
Assim, no setting analítico, questiona-se, reflete-se, provoca-se, silencia-se como forma de criar possibilidades para que o analisante possa olhar para si, reconhecer seus desejos e perceber que talvez ele não seja exatamente aquilo que construiu para ser socialmente aceito. Trabalha-se no setting para diminuir ou flexibilizar o ego. Desse modo, a psicanálise é um tratamento singular, uma experiência de cura.
Os sintomas são a coisa mais importante para a psicanálise, eles são o nosso início de trabalho, nosso foco com o analisante. O analista não irá curar o sintoma, mas, sim, junto ao analisando, irá tocar nos lugares reprimidos, no superego para encontrar formas de ressignificação e de alívio. O sintoma apontará o caminho para entendermos os desejos e chegarmos no inconsciente, por meio da análise do discurso, da livre associação, do acolhimento, da amorosidade.
Logo nas entrevistas iniciais, o psicanalista anuncia de alguma forma aquilo que orientará a análise: a livre associação. Essa fala livre deverá vir daquilo que lhe passa na mente, irá discorrer sobre as verdades de cada sujeito. Na fala, há de ter-se sinceridade, mesmo que lhe seja desagradável. Na livre associação, podemos falar sobre todo o indizível, todo o censurado, falar sem os obstáculos, que, de alguma maneira, nos amordaçam e nos geram os sintomas.
A fala aliviará a tensão psíquica. Os conteúdos, vindos da fala, darão indícios do que está oculto, o que o desejo manifesta no inconsciente. Essas representações apresentam-se para o analista, e cabe a ele interpretá-las e propô-las ao analisante, apontando que um conteúdo manifesto (o que o analisando falou) tem na base um conteúdo latente (os desejos e os sinais não ditos que o analista interpretou).
Ideias inicialmente desconexas vão ganhando formas no discurso do analisante, com o manejo do analista, como se este colhesse algo incoerente e mostrasse que, na verdade, tem importância na causa do mal-estar, tem conexão com a forma de ser, de pensar e de agir do analisante. Cada palavra expressa é um caminho para a redução dos sintomas. Psicanálise é um percurso de vida, que busca uma sublimação para que haja um equilíbrio, embora o equilíbrio seja sempre precário.
REFERÊNCIAS
FREUD, S. A interpretação dos sonhos. Tradução Renato Zwick. Porto Alegre: L&PM Editores, 2019.
Comentarios